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sexta-feira, 22 de julho de 2016

NOS ALPENDRES DA SAUDADE

NOS ALPENDRES DA SAUDADE

Por essa época do ano, reuniam-se todos os netos. Estávamos de férias e o ponto de encontro era a casa de meus avós, onde ficavam hospedados os netos que vinham de fora. Vovó fazia doce para todos nós. Os que não podiam passar os dez dias com vovó, vinham nos dois fins de semana. Quando eu nasci, meu avô já havia falecido, mas até hoje ele é o morto mais vivo que eu conheci. Vovó o amava tanto e tanto lhe agradava que, quando estávamos em nossas traquinagens, ela ainda usava da autoridade dele para nos colocar na linha. Poucos foram os primos que desfrutaram dele e eu gostaria demais de ter sido um destes. Dizem que vovô foi muito rigoroso com os filhos, tanto que estes quase não o reconheciam quando o viam, outra vez menino, brincando com os netos: meu avô, de quatro, levando os netos no lombo, brincando de cavalinho. Antes de falar sobre vovô, quando perguntávamos a vovó quem era ele, ela ficava em silêncio, suspirava um pouco e sempre dizia: é o grande amor da minha vida.
Também não alcancei mais vovó morando no sítio. Aqui, na cidade, a casa era toda de alpendre, para as conversas da noite, para os campeonatos de corrida, durante o dia. Cabiam umas dez redes. Ora dez, umas vinte. Mas a parte da casa que mais amávamos era o quarto do muro, onde estava tudo o que era de meu avô. Era uma mistura de museu, armazém, oficina, depósito de bugigangas. O que precisava de conserto tinha que ficar antes ali, mesmo vovô não estando mais ali para consertar.
Tanto vovó quanto vovô eram filhos da agricultura e da pecuária, nascidos aqui mesmo, filhos das raízes mais velhas da nossa terra. Ela era professora, embora não tivesse feito o Curso Normal, pois, quando pensou em sair para a capital, meu avô desatou no choro. Foi a única vez que vovó o viu chorar. Ela não aguentou e ficou para sempre ao lado dele. Como é bom saber que uma história de amor existe tão perto e tão dentro de nós, nascida de um olhar que soube ser fiel. E estamos indo no mesmo caminho...

@gleiberdantas – Caicó, 22 de julho de 2016.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Poeta como você

POETA COMO VOCÊ

Sou tão poeta quanto você pode ser, se ainda não é. A vida se manifesta a todos nós; alguns, é que a tomam como uma indireta, recebem-na como de mau humor e não sabem acolher a vida, se estiver ainda com seus defeitos e impotências. A verdade da vida é também a poesia que ela guarda. A poesia não é uma ilusão, é um desafio fora do comum. A poesia sabe acolher os bastardos. Ela exige que você se disponha a ver, simplesmente. Você pode dizer que ver todos querem, e eu digo que queremos ver o que nos agrada tão só. A poesia não se deixa dominar, ela é uma passagem secreta da vida. Muitas pessoas incriminam a poesia como sendo uma manifestação humana de segunda categoria, apenas porque não aceitam a denúncia que a poesia proclama, isto é, a poesia não se faz à base de dinheiro. Ninguém reduza poesia à rima, porque a poesia se manifesta como bem entender. Há pessoas que parecem não ter nada a ver uma com a outra e formam uma rima perfeita, embora sejam, em sua forma, dissonantes.
Poetas são seres humanos que têm alma de poesia, uma alma de olhos abertos e ouvidos atentos a escutar o que não foi dito. Poeta é um porta-voz de sentimentos que, às vezes, nem seus são, é um delator de si mesmo. O poeta não tem, necessariamente, que ser escritor. A sensibilidade todos possuem, uns mais aguçada que outros, sendo que nem todos aceitam receber o batismo da poesia. A poesia tem o poder de tornar leve o que ainda é pesado de ser sentido, mas esse poder ela entrega somente a quem enfrenta a dor.
Quem é que não pode ser poeta? Quem condenou o amor ao degredo. A poesia, antes de ser palavra, é pensamento, é um estilo de viver, é uma possibilidade a mais, que acaba ganhando todas as apostas que fizermos com ela. É a poesia que preenche o vazio de uma ausência e mantém sempre verde o caminho pelo qual há muito não se anda. É de poesia que bem se pode chamar cada dia de nossa vida.

@gleiberdantas – Florânia, 15 de julho de 2016.